Patrícia Russo Gibran*
Um lugar em que minhas qualidades, defeitos, virtudes e limitações possam ser aceitas. Um lugar em que eu possa repousar de toda a agitação do mundo. Ainda que eu precise rodar todo o universo e as muitas possibilidades dos universos paralelos, quero, um dia, encontrar esse lugar. E foi por isso que, mesmo com o caos audiovisual que reside em “Tudo em todo lugar ao mesmo tempo”, tudo o que senti vendo o filme foi uma sensação de paz que mal consigo descrever com as palavras que a Língua Portuguesa me empresta.
Avassaladora, a obra de arte dos Daniels – como é conhecida a dupla de diretores Daniel Scheinert e Daniel Kwan – raspou as prateleiras de troféus nesta última temporada de premiações do cinema mundial, tornando-se o filme mais premiado de todos os tempos. Uma trajetória brilhante, coroada, por fim, por nada menos que sete estatuetas do Oscar 2023, entre elas a de melhor filme. Mas o reconhecimento da crítica e do público não alcançam, por si só, a grandeza do trabalho cinematográfico que me arrastou tela adentro para uma das poucas realidades que não foram retratadas ali: a minha.
Enquanto todos analisavam a complexidade do roteiro, que acompanha a protagonista Evelyn em uma viagem pelo multiverso e as muitas vidas que ela poderia ter vivido caso tivesse tomado decisões diferentes ao longo da vida, eu me via frente a frente com um espelho da minha própria vida e das minhas próprias decisões. A produção, em si, é vertiginosa e faz jus ao nome escolhido para ela. A montagem é feita de forma a dar a impressão de que, de fato, tudo está acontecendo ao mesmo tempo. Aqui em mim, no entanto, as cenas se sucediam como que em câmera lenta.
Muitos de nós já experimentamos a sensação de incômodo quando, de alguma forma, notamos que não somos bem-vindos em um ambiente ou grupo de pessoas. Muitos de nós já nos sentimos deslocados, indesejados, aceitos pela metade. Como se nossa complexidade interior não coubesse neste mundo. Como se os galhos de nossas nuances precisassem ser cuidadosamente podados para se encaixar nos canteiros do afeto alheio. Como se nossos sonhos fossem continuamente roubados por um cotidiano que não admite mágica, somente taxas e impostos. Isso acontece, muitas vezes, no ambiente escolar. Não é à toa que se fala tanto de combate ao bullying entre crianças e adolescentes. Aceitar a complexidade alheia é tarefa complicada até mesmo para os adultos.
É claro que, no filme, esse incômodo é levado aos confins de cada um dos universos que vão se apresentando, um após o outro. Preterida pela mãe no universo “real”, Joy, a filha da protagonista, transforma-se em uma espécie de todo-poderosa vingativa no multiverso. Juntas, as duas percorrem essas realidades paralelas, em uma busca que não deixa de soar engraçada em muitos momentos. O que está em jogo, porém, é algo muito mais profundo: o relacionamento conturbado vivido por elas na realidade inicial do filme, um espinho que continua a incomodar em cada uma das muitas possibilidades do multiverso. Será que não é assim que se sentem muitos dos estudantes, hoje em dia? Tentando se encaixar na realidade que têm à disposição sem ter as ferramentas necessárias para compreendê-la.
Fico me perguntando a quais confins igualmente distantes já precisei levar meus próprios incômodos, na tentativa de que esses espinhos me doessem um pouco menos. Para quais cantos já tentei fugir, buscando desesperadamente ser aceito com meus detalhes tão próprios e pessoais. E, estando preso a uma realidade única e fixa, em que as decisões que não tomei são meramente um caminho que jamais será percorrido e cujas consequências só posso intuir, concluo que eu, também, explorei cada canto que me foi permitido alcançar, à procura de um espaço em que eu pudesse ser aceito, amado e apoiado. Esse é, para mim, o papel da escola e dos educadores na vida de cada aluno que por eles passa: ser uma realidade confortável em que eles possam relaxar e se desenvolver, ainda perdida em um multiverso de dores e incômodos. E é por isso que, a despeito de toda a superprodução lindamente costurada em meio ao caótico vencedor do Oscar deste ano, eu vi o filme sentindo uma paz que inundou tudo, em todo lugar, ao mesmo tempo. Que possamos ser isso para nossos estudantes.
*Patrícia Russo Gibran é gerente de Marketing dos colégios do Grupo Positivo.