O Brasil é um país privilegiado tanto por sua abundante diversidade de fauna e flora e pelo seu clima tropical, quanto por suas dimensões continentais que lhes proporcionam fazer fronteira com diversos países. Além disso, do ponto de vista econômico, é detentor de um dos maiores rebanhos agropecuários do mundo, assim como está entre os três países de maior faturamento no segmento pet.
Todos esses dados, associados ao crescimento urbano, ao desmatamento, às desigualdades sociais e à deficiência na integração de dados de vigilância trazem motivos de grande preocupação quanto à falta de informação da população sobre os riscos e o aparecimento e proliferação de zoonoses, doenças que são transmitidas de animais para humanos ou de humanos para os animais.
Neste aspecto, a Médica Veterinária Luciana Salini Abrahão Pires, doutora pela Universidade Federal do Paraná e professora de Doenças Infecciosas e Parasitárias do Centro Universitário UniBrasil, ressalta o quanto é necessário que o Brasil disponha de um plano de vigilância epidemiológica que seja ativo e interligado entre os setores animal, humano e ambiental, para atuar na detecção precoce de riscos e nas medidas de prevenção.
Impacto das mudanças climáticas
De acordo com Luciana, as mudanças climáticas têm um impacto significativo na propagação de zoonoses. “Esse impacto pode acontecer por diversas maneiras, como pelo aumento das temperaturas e a alteração dos padrões de precipitação que estão expandindo o alcance geográfico de muitos vetores, como mosquitos e carrapatos, que transmitem doenças zoonóticas”.
A professora destaca também que os invernos mais curtos e menos rigorosos podem permitir que vetores sobrevivam durante todo o ano, aumentando a incidência de doenças. “As espécies invasoras também são introduzidas em novos ambientes e podem levar consigo novos patógenos zoonóticos. As mudanças climáticas podem afetar a distribuição e o comportamento dos reservatórios de doenças – animais que hospedam patógenos, alterando os padrões de transmissão para humanos e animais domésticos”, explica a doutora.
Sinais de alerta
A educadora destaca, ainda, que uma variedade de indicadores epidemiológicos, ambientais e comportamentais podem servir como sinais de possíveis surtos de zoonoses. “Por isso, é preciso estar atento a esses sinais para a detecção precoce e para a implementação de medidas de controle eficazes”, orienta.
Luciana relaciona a seguir sinais de alerta para possíveis surtos de zoonoses:
• Um aumento inesperado no número de casos de doenças zoonóticas em uma região específica ou a detecção de novos casos em áreas, onde a doença não era previamente endêmica;
• Aparição de sintomas atípicos em humanos ou animais que podem indicar uma nova cepa de patógeno;
• Doenças graves ou mortes inexplicáveis em populações animais, especialmente se ocorrerem em várias espécies;
• Movimentos de populações de vetores, como mosquitos ou carrapatos, para novas áreas devido a mudanças climáticas ou ambientais;
• Alterações no comportamento ou distribuição de reservatórios de doenças, como roedores ou morcegos;
• Eventos climáticos extremos, como enchentes, secas ou desmatamento, que podem alterar os ecossistemas e aumentar o risco de transmissão de zoonoses;
• Degradação de habitats naturais, forçando animais selvagens a se aproximarem de áreas habitadas por humanos;
• Aumento das atividades que envolvem contato próximo com animais selvagens ou domésticos, como agricultura, caça ou comércio de animais vivos;
• Expansão urbana e invasão de habitats naturais, aumentando o contato entre humanos e animais selvagens;
• Relatos de surtos de doenças em animais de criação ou de estimação, que podem servir como um indicador precoce de risco para humanos. Como o que está acontecendo com a gripe aviária nos Estados Unidos agora, onde o vírus passou a causar uma epidemia no rebanho bovino e agora já existem alguns casos da gripe em seres humanos que trabalham em fazendas de bovinos;
• Relatórios de vigilância epidemiológica que mostram padrões incomuns de doenças infecciosas;
• Identificação de novas cepas de patógenos zoonóticos em laboratórios de pesquisa e diagnóstico;
• Mudanças nos padrões de migração humana devido a conflitos, desastres naturais ou mudanças econômicas, que podem introduzir novos patógenos em áreas não afetadas.
“Monitorar esses sinais de alerta de forma contínua e coordenada entre profissionais de saúde humana, animal e ambiental é essencial para uma resposta eficaz e oportuna a possíveis surtos de zoonoses”, reforça a Médica Veterinária.
Medidas de prevenção
É importante saber, também que os hábitos de consumo humano afetam a disseminação de zoonoses. A professora explica que, na medida em que ocorre o crescimento da população humana e o desenvolvimento econômico, ocorre também o aumento da demanda por alimentos. Com isso, existe um processo de intensificação da criação agropecuária, buscando produzir mais proteína animal em menor espaço físico e em menor tempo possível.
Este processo de intensificação, na visão da doutora, pode trazer um nível elevado de estresse entre os animais, fazendo com que surjam doenças transmitidas entre eles, que, em um determinado momento podem encontrar nos seres humanos um ambiente propício para seu desenvolvimento.
“Práticas ilegais de caça de animais silvestres coloca os humanos em contato direto com o risco de infecções. A globalização e a movimentação de produtos alimentares podem dispersar patógenos a longas distâncias. Práticas inadequadas de higiene e manipulação de alimentos também contribuem para a contaminação e propagação de doenças zoonóticas. A adoção de hábitos de consumo mais sustentáveis e conscientes pode reduzir esses riscos e promover a saúde pública”, complementa Luciana.
Logo, as medidas preventivas incluem uma combinação de práticas de higiene, vacinação, uso de equipamentos de proteção individual e educação. “No que diz respeito à higiene, é importante lavar as mãos regularmente com água e sabão, principalmente após manusear animais ou materiais contaminados. Usar desinfetantes adequados para limpar superfícies, equipamentos e áreas de trabalho. Utilizar luvas, aventais, máscaras e óculos de proteção ao lidar com animais ou materiais potencialmente infecciosos. Em alguns casos, deve-se usar botas de proteção e roupas de trabalho apropriadas para evitar contaminação. Deve-se utilizar técnicas de manejo seguro para minimizar o estresse e o risco de lesões ao lidar com animais, e evitar contato desnecessário com animais selvagens ou desconhecidos”, orienta a professora.
Ainda neste cenário, a médica veterinária complementa que os programas de vacinação animal são fundamentais para a prevenção de zoonoses, pois protegem a saúde dos animais, reduzem a transmissão de patógenos entre animais, reduzindo o risco de transmissão aos humanos. “Vacinar animais contra a raiva por exemplo, não só protege os próprios animais, como também reduz significativamente o risco de transmissão da doença aos humanos. Além disso, campanhas de vacinação em massa durante surtos ajudam a controlar a disseminação de zoonoses e a diminuir a carga sobre os sistemas de saúde pública. Programas de vacinação também incluem componentes educacionais que aumentam a conscientização sobre a importância da vacinação, promovendo comportamentos preventivos e protegendo a segurança alimentar ao prevenir doenças em animais de produção”, assegura.
Outro ponto fundamental no processo preventivo é a educação, pois, de acordo com Luciana, aumenta a conscientização sobre as doenças, suas causas e modos de transmissão, promovendo práticas de higiene e manejo seguro de animais. “A educação incentiva a vacinação e os cuidados veterinários, melhora a segurança alimentar através do estímulo às práticas seguras de manipulação de alimentos e alerta sobre os riscos do contato com animais selvagens. Além disso, programas educacionais capacitam comunidades e profissionais para identificar e responder eficazmente a surtos, promovendo uma abordagem integrada entre saúde pública, agricultura e meio ambiente”, justifica.
Importância da vigilância epidemiológica
Em todo este contexto, a vigilância epidemiológica desempenha um papel fundamental na detecção precoce de surtos, monitoramento contínuo e avaliação da eficácia das intervenções, afirma a Médica Veterinária e professora do UniBrasil. De acordo com ela, ao identificar rapidamente novos casos, a vigilância permite uma resposta rápida para conter a disseminação de doenças entre humanos e animais.
“É através da vigilância epidemiológica que ocorre o monitoramento da incidência e prevalência de zoonoses ajuda a ajustar estratégias de prevenção com base em dados atualizados. A vigilância também identifica fatores de risco, como comportamentos humanos e condições ambientais, permitindo intervenções específicas para reduzir surtos. Além disso, a vigilância avalia a eficácia de medidas de controle, garantindo o uso eficiente de recursos. Portanto, detectar novos patógenos emergentes (novos) antes que se tornem ameaças significativas é outra função crítica da vigilância”, evidencia.
Por fim, a professora de Doenças Infecciosas e Parasitárias do Centro Universitário UniBrasil, salienta a importância da adoção da abordagem em Saúde Única, uma vez que, de acordo com a Organização Mundial da Saúde, existem mais 200 zoonoses conhecidas. Aproximadamente 60% das doenças infecciosas humanas são doenças zoonóticas.
Entre as doenças chamadas de emergentes, cerca de 75% são doenças com origem em animais. A maior frequência dessas doenças se deve à crescente aproximação entre animais selvagens e humanos, à invasão de habitats naturais e à urbanização.
“Os métodos de prevenção de doenças zoonóticas são diferentes para cada patógeno, no entanto, existem práticas que podem ser eficientes na redução do risco como: uso de água potável, remoção correta de resíduos, adoção das diretrizes seguras para o cuidado com os animais domésticos e no setor agropecuário, manipulação adequada dos produtos de origem animal para consumo e práticas de higiene pessoal após contato com animais. Logo, com a adoção da abordagem em Saúde Única, com equipes multidisciplinares, é possível monitorar a saúde animal, humana e ambiental de forma interligada, auxiliando no alerta precoce, prevenção e controle de ameaças de doenças animais, por meio do compartilhamento de dados e avaliações de risco”, finaliza a Médica Veterinária Luciana Salini Abrahão Pires, doutora pela Universidade Federal do Paraná e professora de Doenças Infecciosas e Parasitárias do Centro Universitário UniBrasil.