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Opinião – Pequenas coisas como estas

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Opinião – Pequenas coisas como estas

Daniel Medeiros*

No livro da escritora irlandesa Claire Keegan, um homem bem casado, com cinco filhas, põe em risco seus negócios para ajudar uma jovem supostamente abusada, física e psicologicamente, em um convento da pequena cidade onde vive. A história se passa no período que antecede o Natal. O homem, Bill Furlong, trabalha arduamente como comerciante de carvão e madeira e este é o período mais intenso de entregas. Em casa, a esposa prepara os arranjos e a ceia de Natal. Bill está cansado pelas longas horas dirigindo o caminhão de entregas e sua cabeça também não para, preocupado com o destino das filhas diante daquele mundo hostil, masculino, com bêbados que assobiam para crianças como se isso fosse normal. 

No alto da colina, do outro lado do rio que corta a cidade, ergue-se um convento de freiras que, além das religiosas, abriga várias jovens moças que lá trabalham. Ao entregar o carvão, Bill repara no tratamento severo que é dado às jovens, muitas delas mães solteiras ou mulheres caídas em desgraça, enviadas para o convento por suas próprias famílias ou pela administração da cidade, que ignora ou fingem ignorar o que se passa dentro dos muros do convento. Ninguém comenta nada, pois o convento tem um papel econômico importante para a pequena cidade, inclusive para os negócios de Bill.

Mas as imagens que ele presenciou, particularmente com um jovem garota chamada Sarah, mãe de um bebê de 14 meses, não lhe abandonam. Nesse momento da narrativa, ficamos sabendo que Bill Furlong é filho de uma mãe católica que foi acolhida por uma viúva protestante e que, graças a isso, Bill e a mãe escaparam desse mesmo destino, sendo criado com amor e próximo da mãe, até tornar-se o chefe de família que agora defrontava-se com um dilema que é o coração da história: deveria intrometer-se com o assunto, mesmo com o risco de prejudicar sua família e seus negócios, depois de tanto sacrifício para chegar onde chegou? Ou aquelas jovens mereciam alguém que falasse por elas, que alertasse para o que acontecia ali, que não repetisse o que todos faziam, isto é, olhar para baixo e seguir com suas vidas como se a vida dos outros não lhes dissesse respeito?

E se a Senhora Wilson não o tivesse acolhido e cercado de suas “gentilezas diárias”, e das pequenas coisas que fizera e que deixara de fazer por ele e por sua mãe, onde ele estaria? 

Bill resolve ajudar a jovem Sarah e a leva para casa. Não importou nesse momento a possibilidade de ser prejudicado pelas freiras e nem o que poderia acontecer com suas filhas que estudavam em uma escola religiosa. O que importava é que o mundo privado de Bill não se sustentava sozinho, precisava de um entorno minimamente digno ou então nada seria possível garantir sobre o futuro de suas filhas. 

A história ecoa uma velha máxima do pensador grego Aristóteles: a maior felicidade não é a felicidade individual, mas a felicidade geral. Não é o bem para um, mas o bem geral. O silêncio ao qual condenamos os vícios públicos com a esperança de que eles não nos atinjam é um risco que a História já mostrou elevado. Na Irlanda, as chamadas Lavanderias de Madalena exploraram a mão de obra de mais de 30 mil jovens mães rejeitadas pelas famílias cristãs e seu moralismo às avessas. Acredita-se que cerca de 9 mil crianças tenham perecido por trás dos muros desses conventos, entre 1922 e 1996, quando essa prática foi proibida pelo Estado. Se tivessem havido mais Bills, quem sabe a história poderia ter sido menos dolorosa.

*Daniel Medeiros é doutor em Educação Histórica e professor de Humanidades no Curso Positivo. @profdanielmedeiros

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