Daniel Medeiros*
A filosofia vem se desdobrando, ao longo dos séculos, com a seguinte questão: somos capazes de conhecer as coisas que acontecem exatamente como elas acontecem? Não cabe aqui descrever os diversos ângulos desse debate, mas destacar que, ao fim e ao cabo, persistimos na dúvida: o que sabemos das coisas é o que somos capazes de perceber, mas não é, necessariamente, o que as coisas podem, de fato, ser.
Quem tem um cão em casa entende um pouco do que quero dizer. Os bichinhos ouvem e cheiram coisas que parecem não existir para nós. Mas elas estão lá. O que mais poderá existir sem que sejamos capazes de enxergar ou ouvir? E do que somos capazes de enxergar e ouvir, o que corresponde ao que de fato há e existe?
George Berkeley, um bispo irlandês que viveu no século XVIII, defendia a ideia de que, além do espírito humano, tudo o mais é apenas uma suposição. Estamos presos às nossas percepções sem que, em momento algum, possamos efetivamente afirmar o que existe além. O que faz com que a ficção da trilogia Matrix encontre seu suporte filosófico. E tudo se torne mais confuso para todos os que resolvem pensar sobre isso.
Com as redes sociais e a integração do mundo em torno de informes dos fatos que se propagam em segundos, qualquer coisa que chamamos de “real” pode ser uma miragem ou uma invenção. Cada vez mais identificamos menos as possíveis diferenças entre uma coisa e outra. A tecnologia impede-nos de reparar a diferença entre o que costumávamos distinguir como falso ou como verdadeiro. O que resta é nossa capacidade de avaliação, dos filtros que criamos para auxiliarmo-nos na decifração da miríade de informações que chegam a nós todos os dias. Em última instância, como afirma Berkeley, nossas inferências são a única chave para tentar ultrapassar aquilo que os sentidos nos informam imediatamente e, a partir delas, conseguir construir uma convicção capaz de nos orientar e definir nossas ações em relação às percepções das coisas que advém dos fatos do mundo real.
Um exemplo: ultimamente, o presidente da República vem repetindo que as urnas eletrônicas não são confiáveis e que os ministros do Tribunal Superior Eleitoral não são imparciais. A estratégia adotada pelo presidente – que é candidato à reeleição – fundamenta-se nesse imbroglio filosófico: aquilo que eu não posso afirmar com segurança, também não tenho como negar com segurança. Assim, qualquer frase que seja lançada no mundo virtual vai se debater em nossas instâncias de percepção e inferência sem que, em última análise, possam ser categoricamente afirmadas ou negadas. E essa dúvida simples que persiste entre o fato e a percepção do fato encontrou agora sua morada política. E seu mestre condutor.
Chegaremos ao pleito desse ano com uma perspectiva sombria: ninguém poderá afirmar o que de fato aconteceu em termos de manifestação da vontade dos eleitores. Se o candidato da oposição vencer no primeiro turno, isso poderá ter sido um resultado combinado entre fraude das urnas e conivência dos ministros do TSE; se a eleição for para o segundo turno, a tese de fraude se fortalece e é possível que nem mesmo a votação ocorra, visto que não é necessária, em face das diversas “provas” de sua parcialidade. Caso ocorra, e o candidato da oposição ganhe em segundo turno, repete-se o argumento e abre-se a via da intervenção em defesa da “verdade das urnas”, que poderia ser a mentira das urnas, mas, nessa altura dos acontecimentos, ninguém mais saberia o que estaria vendo e ouvindo, e a percepção dos fatos dependeria da força da transmissão das versões em relação a eles.
Aí reside o outro braço da estratégia do atual presidente: afirmar o direito de expressar-se sem limites, como se a liberdade consistisse em poder dizer qualquer coisa, sem consequência ou responsabilização. Nos últimos dias, o ministro do STF indicado pelo presidente, cancelou a cassação de um deputado que havia afirmado que as urnas eletrônicas tinham sido fraudadas, numa clara defesa de que mentir não é motivo para punição, mesmo que essa mentira implique por em risco a lisura de todo um processo de composição da representação política dos poderes da Nação.
Fecha-se assim a estratégia que solapa a Política da forma que conhecemos contemporaneamente. Tudo pode ser mentira desde que eu diga que é. Se eu repetir esse processo diária e intensamente, a percepção é afetada de tal forma que gera dúvida sobre a verdade que ela nega. E a verdade balança. Aquilo sobre o qual não há nenhum indício concreto de fraude – caso do funcionamento das urnas – passa a ser questionado, com base na alegação propalada pelo presidente e hiper dimensionada pelas redes sociais. O mesmo em relação à postura dos ministros responsáveis pela condução do processo eleitoral e que, agora, parecem não ter mais condições “morais” de afirmar nenhum resultado, pois estariam a serviço das forças contrárias. Como disse Berkeley: pois o que são os objetos senão as coisas que percebemos pelos sentidos, e o que nós percebemos pelos sentidos além de nossas próprias ideias e sensações?
Estamos perdidos.
*Daniel Medeiros é doutor em Educação Histórica e professor no Curso Positivo.daniemedeiros.articulista@gmail.com@profdanielmedeiros