Era uma vez um país com mais de oito milhões de quilômetros quadrados, sendo o maior do mundo em áreas aproveitáveis para a agricultura e para o pastoreio. Esse país tem clima ameno e regime de chuvas regulares na maior parte do seu território, além de ser servido por uma teia hidrográfica surpreendente. Logo, como já disse um viajante que aqui esteve, há muito tempo, nesse lugar, “em se plantando, tudo dá.”
No entanto, entenderam seus governantes, que só um número muito pequeno de pessoas deveria usufruir das benesses dessa terra e, por isso, dividiram-na em quinze lotes, depois quatorze, e a entregaram a doze felizardos que, por sua vez, destinaram grandes nacos de seu enorme quinhão, aos quais chamaram de sesmarias, para seus amigos, parentes e afins. A mata foi sendo derrubada e grandes fazendas surgiram, com plantações de cana, algodão, tabaco e depois, bem depois, café. Para colocar tudo de pé e manter o ritmo do plantio, colheita, manufatura, encaixotamento, transporte e exportação, primeiro usaram os habitantes originários da terra, e depois trouxeram escravizados de outro continente, aos milhares, aos milhões. A terra prosperou e quem a via na condição de beneficiário, dizia: como tudo funciona bem! Mas para os que eram os pés e as mãos do dono da terra, o sistema era cruel e opressor, e só a resistência e a fuga faziam sentido. Construiu-se em torno desses dois mundos um diálogo surdo, no qual um lado via o outro como o entrave, o obstáculo, a impossibilidade. Os senhores das terras, porém, levaram a melhor com a narrativa de homens bons enquanto os negros escravizados tornaram-se os fujões, os preguiçosos, os incapazes, mesmo quando sustentavam sobre seus ombros a empáfia e arrogância de seus senhores.
O tempo passou e nada mudou. No século XIX, a Inglaterra resolveu fazer cessar o tráfico negreiro, porque isso passou a atrapalhar seus negócios com a nascente indústria, e esse país de terras tão férteis, pressionado, aceitou elaborar uma lei para acabar com a importação de cativos. A lei foi aprovada em 1831 e regulamentada em 1832, mas até 1850 foi flagrantemente desrespeitada. Nesse período de ilegalidade, mais de setecentos mil negros escravizados foram trazidos para esse país de homens honrados, para servir nos canaviais e, principalmente, nos cafezais do Vale do Paraíba. Ou seja, a riqueza dos barões do café erigiu-se sobre o crime do contrabando. Mas a narrativa deu a eles, mais uma vez, a vitória, e ainda hoje, os chamados “quatrocentões” ostentam seus sobrenomes com o orgulho de quem “ajudou a construir essa grande Nação”. Aos negros, sobrava a sina da resistência e da fuga, formando quilombos que permitiram, entre tantas dificuldades, uma sombra de vida livre, ilhas de sobrevivência de uma dignidade que nunca se supôs fazer parte do dicionário da maioria dos brasileiros, mas somente dos senhores das terras.
Na medida em que esse contrabando tornava-se mais e mais escandaloso, os ingleses iam perdendo a paciência com o governo desse país e passaram a impor sanções cada vez mais intensas. Ao mesmo tempo, o governo imperial enfrentava dificuldades nas colônias do sul, cujas fronteiras subpovoadas tornavam-se apetitosas para os ambiciosos vizinhos platinos, e esse apetite precisava ser controlado. Mas, para enfrentar os “hermanos”, era preciso antes resolver as coisas com os ingleses. A saída foi, então, acabar de vez com o tráfico e substituí-lo, paulatinamente, pela mão de obra imigrante, livre e assalariada.
Até aqui, as terras desse imenso país não tinham um dono claro nem regras de aquisição que estivessem ao alcance de qualquer um. A violência era a lei, e os antigos acordos da época da colônia definiam os limites de imensos feudos a perder de vista. Índios e negros escravizados não tinham direito de viver em terra alguma e, se viviam, era como fugidos ou escondidos, distantes das áreas de interesses dos homens bons e honrados. Porém, na medida em que a fronteira avançava, a violência ia ditando os novos proprietários, sem direito ao contraditório. Mas agora, por força da conjuntura internacional, o país receberia brancos livres, europeus, em busca de uma nova vida por aqui. Como obrigá-los a trabalhar no lugar dos escravos em vez de quererem se firmar como pequenos proprietários? Terra não faltava. O que faltava era interesse em vê-la ter novos donos. A saída, engenhosa, foi criar uma lei, aprovada no mesmo ano da lei que acabou definitivamente com o tráfico, determinando que a aquisição de terras agora exigia pagamento em dinheiro. Como a maioria esmagadora dos imigrantes eram pobres e desvalidos, fechava-se convenientemente as portas das terras para eles, sobrando-lhes as fazendas de café ou a sorte de algum serviço nas cidades, onde teriam de disputar com os negros livres e os escravos de aluguel os mil réis disponíveis.
E assim, a história desse grande país foi sendo escrita, de acordos entre amigos – o país das cordialidades -, entre ilegalidades flagrantes, violência explícita e leis convenientes. A grilagem, que é o nome que se dá à apropriação ilegal de terras devolutas ou ocupadas por posseiros, quilombolas, indígenas, muitas vezes de maneira violenta e impune, tornou-se tão comum e banal, que virou, no dicionário, substantivo masculino: pessoa que obtém a posse de terras com documentos falsos. Mas a narrativa poderosa dos “homens bons” invisibilizava todas essas práticas. Por outro lado, porém, criminalizar a luta pela reforma agrária, cujo propósito é dar terra sem uso para gente que quer usar, foi sempre um dos importantes temas desses senhores honrados e meritórios. Afinal, o importante é valorizar o trabalho duro, a dedicação e não entregar o peixe, mas ensinar a pescar. E hoje, nesse país do absurdo, uma Comissão Parlamentar de Inquérito, formada por vetustos cidadãos, “investigam” os supostos crimes praticados por aqueles que atentam contra a “sagrada” propriedade da terra, tão duramente conquistada ao longo de nossa “conhecida” História.
A História, a História dos fatos, diante disso, contorce-se em dores de angústia. O passado, recortado e remontado, transforma os que sofreram em vilões, faz dos que foram explorados, aproveitadores sem escrúpulos; transforma os que precisam e querem trabalhar em criminosos perigosos. E logo, não tardará, acabará por ser crime rememorar a História do Passado dos Fatos, fatos que provam que tomaram as terras aos índios e produziram riquezas roubando o trabalho dos negros. No passado distópico, que se deseja oficializar, foram os índios que chegaram a essa terra e encontraram as grandes fazendas com negros, com as costas arqueadas, carregando fardos de cana ou de algodão. E os senhores disseram a esses “visitantes”: somos os donos originários, senhores de tudo e de todos por direito e pela lei. Vão embora, índios gananciosos, tratem de trabalhar e conquistar o seu por merecimento. Não cobicem a terra dos outros. E os índios, constrangidos, pediram desculpas e partiram de imediato.
*Daniel Medeiros é doutor em Educação Histórica e professor de Humanidades no Curso Positivo.
@profdanielmedeiros